quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

D. Nira Lantyer


D. Nira Lantyer (foto) ( por Antônio Lantyer)

Entre a última década do século XIX e a primeira do século XX, na pequena Vila Bela de Santo Antônio das Queimadas, situada na margem direita do rio Itapicuru, nasceram os nove filhos do Coronel Francisco Lantyer de Araújo Cajahyba e de D. Joaquina Nonato Borges Cajahyba: Djanira, Adalgisa, Francisco, João, Solon, Celso, Zulmira, Osvaldo e Valdemar.
Todos viveram e morreram em Queimadas. Adalgisa e Francisco faleceram na infância.
Entre eles havia convivência fraterna e respeitosa Ocasionais divergências eram superadas pelo “poder curativo” do tempo.
Não sei quando me dei conta dessa “teia” de parentes, mas, desde cedo, acostumei-me a vê-los e respeitá-los.
Com o passar dos dias percebi a influência que tinham, direta ou indiretamente, em minha vida e na de meus irmãos.
Uns mais atenciosos e amigos, outros indiferentes e “distantes”.
Era costume pedirmos-lhes a benção ao primeiro e ao último encontro do dia.
Tia Nira foi a que maior influência exerceu sobre mim e meus irmãos, porque, após a morte de minha Mãe passou a morar conosco no Chalé.
Antes desse infortúnio ela residia no centro da cidade.
Enviuvou em 1934. Pouco me lembro de seu marido. Nós o tratávamos por tio.
Minha Mãe morreu no ano seguinte. Um de seus últimos pedidos foi que tia Nira e filhos – Ivan, Ivone e Ivanir – passassem a viver conosco no Chalé. Dias após seu falecimento sua vontade foi satisfeita.
Tia Nira levou também, uma serviçal de muitos anos, Aninha. De tão quieta, era quase imperceptível. Vivia pelos cantos, deslizava encostada às paredes. Seu corpo envergava. Pouco falava.
Não me recordo como foi a integração das duas famílias, mas como é natural, entre as crianças houve choque psicológico e emocional, ocasionando desavenças e atritos de curta duração, nada que inviabilizasse o convívio. Éramos, ao todo, oito crianças, com idades de dois a nove anos.
Tia Nira tinha atributos inatos, peculiares de sua personalidade: tranquila, cordata, prestimosa, conciliadora, gentil e educada.
Atenta às obrigações sociais não esquecia aniversários, visitas, agradecimentos e manifestações de pesar.
Cultuava a memória dos antepassados enaltecendo-lhes as virtudes.
Tímida e discreta, evitava atritos; receava brigas, desavenças. Preservava a privacidade da família.
Esta maneira de ser harmonizava-se com sua voz mansa e suave
que raramente se alteava.
Seu riso era quase imperceptível, algumas vezes, irônico, sarcástico.
Tinha estatura mediana, corpo cheio, cabelos pretos, lisos, abundantes, luzidios e viçosos, que se tornaram grisalhos após os 80 anos.
Sobrancelhas negras e fartas sobre olhos miúdos e castanhos assentados em pele morena – um moreno pálido.
Braços e punhos delgados, rosto oval, suave prognatismo. Buço discreto sombreava-lhe o lábio superior.
Pés pequenos em sapatos quase sem saltos, andar leve, lento, mas firme.
O único atavio que usava era um delicado e bonito par de brincos de ouro com uma pedra rosa no centro circundada por miúdas madrepérolas.
Trajava-se com sobriedade, com recato. Em sua indumentária pre-dominavam cores escuras e pastéis, lembrando a viuvez. O vestido ou a saia descia abaixo dos joelhos; as blusas eram fechadas, com mangas que iam até o meio do antebraço.
Às vezes viajava para Salvador na 1a classe, em trem do Leste Brasileiro. Nessas oportunidades trajava roupas “finas”; usava meias, sapatos de salto e, na cabeça, chapéu, caindo-lhe sobre os olhos um filó preto.
Supervisionava a casa com equilíbrio, procurando preservar o bem estar de todos.
Vejo-a “deslizando” pelos largos espaços do Chalé, ora com o espanador de plumas de emas sacudindo-o nos móveis, ou em outras atividades domésticas, ou, ainda, em andanças do Chalé para a cidade.
Até morrer, aos 101 anos, em que pesem as falhas da memória, teve preservada a saúde e suas excelentes qualidades morais e emocionais.
Manteve o zelo com a aparência, o que evidenciava o cuidado, amor e carinho que lhe dedicavam suas filhas – Ivone e Ivanir.
Não padeceu de doença que comprometesse sua higidez física e mental. Era a mais velha da irmandade e sobreviveu a todos.
Apesar de gozar de excelente saúde queixava-se com frequência de dores no fígado, para cujo “mal” usava chás amargos, principalmente o de marcela, erva encontrada com abundância na lagoa do Chalé. Gostava de chás. Tinha um receituário para os mais variados incômodos à saúde e passava-os adiante.
Certo dia, pessoas de projeção social e política hospedaram-se no Chalé. Integravam uma caravana em campanha para eleição ao governo do Estado. Um deles chegou com desarranjo intestinal. Prontamente “prescreveu-lhe” um chá. O doente disse-lhe secamente: “minha senhora, sou médico”. A aspereza não a abalou. Mandou ao recalcitrante o chá recomendado. Ele se rendeu, ingeriu-o e ficou bom. Ao se despedir agradeceu- lhe, “de crista baixa”.
Não era supersticiosa, nem carola, mas observava certos preceitos – ia à Igreja aos domingos e em dias de festas religiosas. Com o correr dos anos passou a fazê-lo com assiduidade. Temia as doenças e acidentes, por isso fazia-se excessivamente cautelosa.
Quando viajávamos a Salvador para estudar, na hora das despedidas, da saída de casa para pegar o trem, ela mandava que fôssemos “beijar os Santos” e nós, crianças ainda, cumpríamos o ritual: corríamos pelo longo corredor ao quarto dos “Santos” e, às pressas, fazíamos o sinal da cruz e beijávamos a porta do nicho. Pronto, estávamos protegidos pelas
graças de Deus e dos “Santos”. Ela ficava tranquila! Essa prática repetia-se a cada viagem.
Acompanhava-nos à estação e, até a partida do trem, até o último adeus, ela estava fazendo recomendações e dando conselhos.
Frequentava festas no Recreio Clube local. Não dançava, mas lá permanecia acompanhando as filhas e sobrinhas.
Em alguns anos foi a Salvador assistir ao carnaval em companhia de amigos e parentes. Ficavam na Rua Chile ou em São Pedro, onde era permitido às famílias colocarem cadeiras nos passeios para, comodamente, verem os desfiles dos clubes carnavalescos, dos grupos de mascarados, dos blocos fantasiados. Era assim o carnaval daquela época, ordeiro e
civilizado.
Emocionava-se com o desfile dos carros alegóricos dos clubes em evidência: Cruz Vermelha, Fantoches e – o que mais admirava – Inocentes em Progresso.
Agradava-lhe visitar parentes e amigos.
Nas eventuais divergências na família era a apaziguadora, a conciliadora.
Para nós sua companhia foi importante. Sua orientação voltada para o bem, para a moral influenciou muito nossas vidas.
Preocupava-se com a observância das regras de etiqueta, de educação, de posturas necessárias ao convívio social. Quando um de nós – filhos ou sobrinhos – as infringia, ela ralhava, indagando: “Que modos são esses? Que falta de estilo é essa?” E ordenava: “Tenham estilo”!
Sua censura indicava a “quebra” de algum padrão de comporta-mento.
Por algum tempo manteve um pequeno negócio em uma casa que
ficava nas proximidades do Chalé, onde vendia, no retalho, gêneros alimentícios, produtos de limpeza e bebidas. Era a “vendinha” ou a bodega, como a denominávamos.
O movimento maior era aos sábados, dia de feira na cidade.
O local era passagem de grande número de feirantes na ida e na volta da feira, quando já “chumbados”, faziam parada na bodega para “molhar a garganta” e rendiam respeitosa e alegre homenagem a “D. Nira”, entoando músicas e letras improvisadas. Uma delas dizia: “D. Nira cheira, cheira, cheira a flor de laranjeira” e por ai iam suas cantilenas. Alegres e ébrios, ébrios e alegres, seguiam o caminho da roça, tombados sobre o dorso das montarias.
Tia Nira pressentiu mudanças nos costumes e, em um tempo em que se dava valor à vida, em que se levava a sério o casamento e o luto era respeitado, dizia que a morte iria banalizar-se, o casamento perderia relevância e o luto deixaria de existir.
Quando as filhas e sobrinhas estavam preocupadas com os casamentos ela costumava adverti-las dizendo-lhes: “Cuidado, casamento não é Chalé e marido não é João Lantyer...” Sábia advertência! Era o alerta! Abria-lhes os olhos para os percalços do casamento. Advertia-lhes que a “boa vida do Chalé”, onde tinham tudo a tempo e a hora, iria acabar, lembrava-lhes que marido não era como o Pai e Tio.
Ninguém deu ouvido às suas sábias palavras. Todas cumpriram seus destinos, casaram-se e multiplicaram-se, mas creio que viram com o passar do tempo que sua advertência, apesar de difícil de ser cumprida, era sábia.
Suas cartas tinham uma singularidade: acabava de escrevê-las e, quando se lembrava de alguma cousa, ia anotando pelas beiradas do papel, às vezes até no envelope.
Alguns de seus provérbios usuais:
“A natureza é poderosa”.Referia-se às idiossincrasias do ser humano, à maneira de ser de
cada um e a dificuldade em alterá-la.
“Cada um, no palco da vida, representa seu papel”.
“Boa romaria faz quem em sua casa está em paz”. Dizia-me que seu pai utilizava-o com frequência quando recusava pedido de permissão para sair de casa.
“Deixar de ser ferrão para ser boi”. Traduz-se: deixar de mandar para ser mandado.
“Caem os muros e sobem os monturos”. Hoje, diríamos: queda e ascensão social.
“Lá é o lugar onde filho chora e mãe não ouve” Quando alguém vai para lugares longínquos.
“Todo orgulho será abatido!”.

Fonte: http://chalelantyer.blogspot.com/2010/04/tia-nira.html

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